1. Prolegômenos
O Excelentíssimo Senhor Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Doutor Rubens Aprobato Machado, programou a realização do Primeiro Curso e Seminário de Atualização em Processo Civil.
Nessa programação, solicitou a opinião ou o entendimento dos integrantes da Escola Superior da Advocacia, seja do ponto de vista prático ou teórico.
De outro lado, nos últimos meses, muito se tem discutido acerca das alterações do Código de Processo Civil ocorridas pelas leis 11.187/05, 11.232/05, 11.276/06, 11.277/06 e 11.280/06.
Neste pequeno ensaio sustentaremos a desnecessidade de uma reforma processual considerando o ordenamento jurídico existente.
2. Dos elogios à reforma
Alguns juristas brasileiros têm prestigiado as inúmeras alterações do Código de Processo Civil.
E o fazem, por exemplo, sob o argumento de que “o procedimento comum ordinário, como técnica universal de solução de litígios, deveria ser substituído, na medida do possível, por outras estruturas procedimentais, mais condizentes com a natureza do direito material a ser socorrido”.
Outro argumento para a justificativa das reformas relaciona-se com a morosidade do Poder Judiciário , como explicam Pierpaolo Cruz Bottini (Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça) e Sérgio Renalt (Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil): “A morosidade do sistema judicial é evidente, e, junto com a dificuldade de acesso, é o principal elemento a macular sua credibilidade e legitimidade”.
Esses mesmos juristas esclarecem que a causa da morosidade do Poder Judiciário decorre de “da excessiva litigiosidade, a pouca racionalidade de algumas normas processuais e o atraso na gestão administrativa dos tribunais”. Dizem, também: há uma litigância excessiva; a judicialização do cotidiano; cultura do litígio; obstáculos apresentados pela legislação processual na solução racional e célere dos conflitos.
Explicam que em dezembro de 2004 o Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal, bem como das duas Casas Legislativas (Senado e Câmara Federal) em reunião histórica firmaram um pacto por um Judiciário mais rápido no qual apontaram vinte e seis projetos de lei para o aprimoramento da prestação jurisdicional no âmbito civil, penal e trabalhista.
Por fim, informam que tal aprimoramento deve ser analisado “como uma plêiade de propostas com princípios e valores comuns, quais sejam, conferir maior celeridade aos processos, valorizar a atuação do juiz de primeiro grau e inibir práticas protelatórias”.
Em vista disso, ocorreram alterações no agravo; introduziram novo conceito de sentença; estabeleceram novas regras no cumprimento da sentença e sua liquidação; novas regras a respeito da competência; validaram o ato processual por meio eletrônico; criaram a súmula impeditiva de recursos e outras medidas.
3. Do sistema brasileiro
Inicialmente gostaria de frisar que em 1988, encaminhamos ao então Deputado Federal José Theodoro Mendes , integrante da Comissão de Constituição e Justiça, minuta de Projeto de Lei validando o protocolo integrado que fora criado no Estado de São Paulo pelo Tribunal de Justiça. Muitas discussões surgiram a respeito do referido protocolo, e os tribunais superiores entenderam de invalidá-lo.
Não precisamos dizer da importância do protocolo integrado que poderia e pode ser utilizado seja no âmbito estadual, seja no âmbito federal, simplificando o acesso ao Poder Judiciário e aplicando o princípio da instrumentalidade das formas. Aliás, encontramos inúmeras decisões dos tribunais no sentido de que o envio de peças, recursos, etc., pelo Correio, de igual forma é irregular desprestigiando, assim, as idéias inovadoras, econômicas e instrumentais do tribunal paulista. Significa dizer que para protocolizar um recurso nos tribunais superiores, quem estiver em Manaus deverá deslocar-se fisicamente de lá à Brasília!
No Brasil, temos inúmeros princípios: da justiça, da certeza do direito, da segurança jurídica, da isonomia, da legalidade, da irretroatividade das leis, da ampla defesa e do devido processo legal, do direito de propriedade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da eficiência, da impessoalidade, da motivação, da publicidade, da finalidade, da boa fé, da operabilidade ou concretitude, da eticidade, da socialidade, do consensualismo, da dignidade da pessoa humana, da imputação civil dos danos, da responsabilidade objetiva, da autonomia da vontade, do exercício excessivo de direito (abuso), etc.
Muito embora o sistema jurídico contenha essa infinidade de princípios, os quais segundo a doutrina são normas que norteiam e orientam a aplicação do direito, insistimos em legislar de forma a esclarecer ou a explicar esses mesmos princípios.
Afigura-se desnecessário, por exemplo, criar uma lei no sentido de que o funcionário público deva ser eficiente, pois há princípio constitucional nesse diapasão (artigo 37, caput).
Outro exemplo, interessante trazido à baila pela doutrina trata da prescrição e da decadência, e ela têm suscitado uma divergência na qual, acreditamos, ser descabida.
Na vigência do Código Civil anterior, dois critérios foram criados pela doutrina a respeito da prescrição e da decadência. O de Câmara Leal e o de Agnelo Amorim Filho.
O novo Código Civil, na esteira dos entendimentos de Miguel Reale e José Carlos Moreira Alves, criou o critério legislativo que estabelece que todos os prazos inseridos no artigo 205 são de prescrição. Os demais são de decadência.
Todavia, a doutrina vem entendendo que o Código atual adotou a teoria de Agnelo Amorim Filho, tecendo críticas imerecidas a Miguel Reale.
Nesses mesmos comentários já citados, elogiamos a criação do critério legislativo, porque Miguel Reale, cansado de ver decisões judiciais díspares de um mesmo tribunal a respeito da prescrição e da decadência cujo objeto era o mesmo, sugeriu a criação do critério legislativo. Em face disso, como poderemos eleger a súmula como categoria normativa como veremos a seguir?
E, o fez, levando em conta o princípio da operabilidade do direito, inserido que foi no sistema do novo Código Civil. A lei é clara no sentido de que existe o critério legislativo na aplicação desses institutos. Qualquer outra digressão, com o devido respeito, é desprestigiar os princípios gerais de direito já referidos.
De outro lado, interessante, pequena e eficaz alteração (que parece passar despercebida) foi introduzida no Código de Processo Civil há pouco mais de dez anos, sem, entretanto, macular o sistema processual brasileiro que hoje pode ser denominado de Consolidação das Leis Processuais Civis. Trata-se da antecipação da tutela (artigo 273), que a nosso ver pode possibilitar a valorização do Poder Judiciário em todos os aspectos.
Ao nosso ver, somente com a antecipação da tutela, o processo torna-se ágil, prático, simples e rápido. Nada mais, seria necessário.
A antecipação da tutela, em poucas palavras possibilita aquilo que seria conseguido no prazo de oito anos, de uma forma rápida e eficaz.
Não raras vezes, enfrentamos decisões sacrificando a celeridade do processo e o princípio da justiça sob o argumento do recolhimento errôneo de guias de custas. Enfrentamos outros problemas da mesma ordem: o jurisdicionado escolhe o rito ordinário que é mais rápido, atualmente, que o sumário (pasmem) e determina-se a emenda da inicial; apesar do direito estar incontroverso, não se concede a tutela antecipada garantindo a eficácia do provimento jurisdicional. Enfim, são inúmeros os entendimentos e as situações práticas que ofendem literalmente o princípio da instrumentalidade das formas.
Temos o princípio da boa fé, mas não o aplicamos. Enfim, existem um excesso de formalismo processual que são aplicados diariamente em prejuízo do jurisdicionado.
Miguel Reale lastreado em Rudolf von Ihering disse com propriedade: a lei foi feita para realizar os interesses de uma sociedade num determinado momento histórico. Mas, sabem muitos, que o excesso de formalismo e o desconhecimento do sistema impede de alguém registrar um contrato social porque nele não consta o número do Código de Endereçamento Postal!
Portanto, o Poder Judiciário pode ser operável, bastando aplicar, por exemplo, de forma simples e com eqüidade a tutela antecipada. Aa decisão judicial deve ser justa e equânime e não somente célere. Não podemos elaborar leis somente para um dos partícipes da relação jurídica processual, inclusive sem a oitiva dos demais.
As reformas sugeridas, ao que parece, por exemplo, pretendeu inibir o sistema de recursos, esquecendo-se que o Poder Judiciário é controlado pelo sistema de recursos. Pretendeu, outrossim, suprimir diversos princípios de direito. Deu poderes legislativos ao Poder Judiciário, na medida em que criou um sistema normativo de obediência às súmulas! Emprestou à sentença (do juiz de primeiro grau) o caráter de precedente e elevou-a a alçada de súmula dos tribunais superiores! Para não dizer outras subversões ao sistema jurídico brasileiro. Prestigiou uma suposta celeridade do processo em detrimento de princípios basilares do direito, uma vez que tal celeridade é um mito, como muito bem observou José Carlos Barbosa Moreira.
Ora, o sistema sumular criado pelo Supremo Tribunal Federal em 1963 o foi com o objetivo persuasivo e não normativo, impeditivo ou vinculante, como querem os reformistas.
As justificativas para a reforma não são sequer razoáveis para desrespeitar o sistema normativo brasileiro.
Algumas pequenas alterações são admissíveis e elogiáveis, mas não poderia desrespeitar o sistema de princípios do Direito.
Assim, basta que respeitemos os princípios já referidos, e os apliquemos em todos os procedimentos judiciais ou não, a fim de que tenhamos a efetiva aplicação do direito, dando à Justiça a quem efetivamente merece.
Apliquemos, como dito a tutela antecipada de forma equânime e teremos uma justiça rápida e eficiente.
Neste aspecto, trazemos à baila um caso concreto no qual um mutuário celebrou um contrato com uma empresa de construção de casas populares. Ele desistiu do negócio, uma vez que antevia um total desrespeito do contrato e na construção do edifício. Ajuizou ação pleiteando a devolução dos valores pagos, com a antecipação da tutela de setenta por cento e que o valor ficasse depositado à disposição do Juízo, uma vez que previsto no próprio contrato e ainda pelo fato de que na hipótese de desistência a devolução seria nesse percentual. A tutela antecipada foi indeferida em primeiro, em segundo grau e nos tribunais superiores. Mais tarde, sagrou-se vencedor. Porém, hoje não consegue receber porque a empresa faliu e desviou todos os recursos então recebidos dos demais mutuários. Na época do pedido de antecipação da tutela os valores estavam disponíveis.
Assim, bastaria, de forma simples, ter concedido no caso citado, a tutela antecipada conforme pleiteada e hoje, passados mais de oito anos, o jurisdicionado veria realizada a Justiça e não estaria sofrendo prejuízos e dissabores. E mais: não estaria descontente com a Justiça.
Enfim, questões desse jaez e outras tantas que temos assistidos nos últimos tempos, é que fazem com que o jurisdicionado não dê crédito às instituições brasileiras, em especial ao Poder Judiciário (segundo pesquisas, em torno de 50% assim pensam).
Muitas outras digressões e justificativas poderiam ser aqui narradas, mas, em face da brevidade não as abordaremos, o que poderemos fazer num outro ensaio.
4. Conclusões:
Portanto, entendemos que devamos por um basta em alterações legislativas que desrespeitem os princípios já mencionados. Basta que apliquemos os princípios de forma equânime, racional e prática. Vamos aplicar a lei do Guga e não a Lei do Gerson.
Interessante registrar o pensamento de Fábio Konder Comparato acerca da ética. Diz: “Esta a verdadeira imortalidade do homem. Dignitas non moritur, segundo a expressão clássica: a dignidade da pessoa humana é impercebível. É ela que nos indica o caminho da plenitude de Vida, na Verdade, na Justiça e no Amor”.
Por fim, nunca é demais lembrar Ruy Barbosa em seu discurso proferido em 1920: “Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas idênticas no objeto e na resultante; a justiça. Com o advogado, justiça militante. Justiça imperante, no magistrado. Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem”.
Sorocaba, agosto de 2006.
Haroldo Guilherme Vieira Fazano