Nas últimas semanas lemos no Jornal Cruzeiro do Sul artigos a respeito do Juridiquês. Pelo que entendemos tais artigos formulam uma crítica à linguagem utilizada nos meios jurídicos. Pareceu-nos improcedente a crítica, envolvendo, inclusive, juristas de escol como Miguel Reale, Washington de Barros Monteiro e Magalhães Noronha.
Aliás, a linguagem do direito não pode receber uma crítica dessa natureza quando nas mesmas semanas, notícias foram veiculadas sobre a dramática situação da educação nacional. Não é crível que um aluno sequer saiba soletrar seu nome. Não é razoável que os universitários não tenham conhecimentos de história, geografia, filosofia e sequer saibam as repercussões da Revolução Francesa, que não tenham conhecimento dos filósofos, que não saibam a repercussão do culturalismo jurídico de Miguel Reale, que desconheçam o profundo estudo realizado por Washington de Barros Monteiro quanto ao direito italiano, francês e alemão.
Não podemos esquecer que juristas abalizados estudaram o direito pelo sistema de linguagem, como fez Paulo de Barros Carvalho, Lourival Vilanova, Robert Alexy, Geraldo Ataliba, Alfredo Augusto Becker, Jürgen Habermas, Tércio Sampaio Ferraz Jr. e outros. Os textos legais são formulados de forma abstrata para estender sua abrangência a todas as possíveis situações concretas.Subsumir o fato à norma é tarefa do intérprete (juiz, advogado, promotor e demais aplicadores do direito). É tarefa da interpretação, da hermenêutica ou da exegese.
Para Abelardo Torré interpretar é dar um sentido a um objeto cultural. Para Arnaldo Rizzardo interpretar constitui uma forma de entender. Em sentido amplo, esclarece Franco Montoro, o termo interpretar é utilizado para designar, não apenas a determinação do significado e alcance de uma norma jurídica existente, mas, também, a investigação do princípio jurídico a ser aplicado a casos não previstos nas normas vigentes.Tércio Sampaio Ferraz Jr. usa a interpretação como uma investigação zetética, ou seja, as normas jurídicas, ao disciplinar as condutas humanas, possuem um aspecto onomasiológico e semasiológico. O primeiro diz respeito ao uso corrente da designação de um fato, e o segundo sua significação normativa. Maria Helena Diniz prefere utilizar o termo correção do direito e antinomia jurídica, estabelecendo três critérios para a solução das antinomias: o hierárquico, o cronológico e o da especialidade.
Paulo de Barros Carvalho interpreta o direito como um sistema de linguagem em três planos: o sintático, o semântico e o pragmático. Enfim, existem regras técnicas para se interpretar as normas jurídicas, ou seja, para se subsumir o fato à norma. Além das já mencionadas, os clássicos enumeram as seguintes regras de interpretação: a gramatical, a lógica, a sistemática, a teleológica, a histórica, a declarativa, a restritiva, a extensiva.
A utilização desse critério – o lingüístico -, por exemplo, não é “juridiquês”. È o estudo do direito num determinado plano da linguagem.O plano sintático esclarece Paulo de Barros Carvalho, “é formado pelo relacionamento que os símbolos lingüísticos mantêm entre si, sem qualquer alusão ao mundo exterior ao sistema”.O plano semântico refere-se às ligações dos símbolos com os objetos significados.
Por fim, o plano pragmático, esclarece Paulo de Barros Carvalho, “é tecido pelas formas segundo as quais os utentes da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na comunidade social para motivar comportamentos”.A respeito da interpretação lingüística das normas jurídicas diz Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “Ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos lingüísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. Este uso oscila entre o aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, a sua significação normativa. Os dois aspectos podem coincidir, mas nem sempre isto ocorre. O legislador, nestes termos, usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas freqüentemente lhes atribui um sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada. Este sentido técnico não é absolutamente independente, mas está ligado de algum modo ao sentido comum, sendo por isso, passível de dúvidas que emergem da tensão entre ambos”.
Em nosso Curso de Direito Civil (volume I), elogiado pelo Professor Arruda Alvim, estudamos a Escola Clássica do Direito e dissemos que muito embora ela possa ser considerada passado e este dar lugar ao presente (contemporâneo), não podemos descartar ou negligenciar as clássicas lições que tivemos de nossos antepassados. Edson Luiz Fachin na sua Teoria crítica do direito civil, p. 4, observa que a ”Precisão e rigor não se confundem, necessariamente, no trato dos signos e conceitos jurídicos, com formalismo excessivo e despropositado. É certo que o saber jurídico que se encastela em definições e abstrações pode ser impreciso e negligente com o seu tempo. Daí porque o tradicional se opõe ao contemporâneo, mas este não pode nem deve negligenciar o clássico”.
Em outras palavras, não podemos negligenciar ou simplificar o português ou ainda, desconhecer a história e o passado. A esse respeito, explica Max Kaser, Direito privado romano, p. 20: ”Com o nome de clássicos designamos os juristas com essa máxima perfeição e validade permanente, graças às quais as suas obras podem servir de modelo às épocas futuras e até aos nossos dias. Esta jurisprudência clássica não elaborou abstractas teorias de escola, antes prosseguiu numa orientação ‘prática’ que, partindo das criações dos juristas, teve em vista a solução clara de casos jurídicos concretos apresentados pela vida: a construção de conceitos jurídicos serviu-lhe apenas de apoio para a solução desses casos”. De outro lado, existem outras linguagens, como ocorre na física, na química, na matemática, na área médica, etc.Portanto, não são os termos utilizados no Direito que atrapalham sua interpretação. É o desconhecimento das técnicas de interpretação que dificultam a plena realização do direito.
Veja por exemplo que o Código Civil no seu artigo 112 prevê que as pessoas devem agir com lealdade e confiança. Logo, desnecessário escrever num contrato que os contratantes devam proceder nos termos dessa disposição legal. O mesmo pode ser dito quanto à Constituição Federal que estabelece os princípios que regem a Administração Pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Desnecessário, pois que uma lei estabeleça disposições de que um funcionário deve ser eficiente ou agir dessa forma. Enfim, o Direito não pode ser sacrificado e nem o português em face da linguagem. Precisamos estudá-la e conhecê-la para a aplicação do direito e principalmente da ética. Além do entendimento das técnicas e dos institutos jurídicos, necessários à compreensão do direito, importa, também, compreendê-los dentro do processo histórico marcado pelos aspectos ideológico-valorativos. Concluímos o que falta no país é uma educação sólida, com conhecimentos em todas as áreas das ciências e não uma sintetização ou uma simplificação do passado ou das ciências. E mais ainda: a valorização dos professores, que nos últimos anos, foram vilipendiados e desconsiderados. A educação, como disse Paulo Freire é “um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa. Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe? Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele.
Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe proporciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção. (...) E isso em todos os seus graus – no da primária; no da média, no da universitária. Esta última desenvolvendo um esforço digno de nota, em algumas regiões do País, na formação de quadros técnicos, de profissionais, de pesquisadores, de cientistas, a quem vem faltando porém, lamentavelmente, uma visão da problemática brasileira”.
O que precisamos, entendemos, parafraseando André Franco Montoro, é a formação de juristas brasileiros não se limitando a simples informações. Registramos, nesse sentido, como disse Pascal, “Mais vale ter uma cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia”.E mais ainda, a educação nacional necessita, como disse Franco Montoro: “Para tanto, esclarece que em primeiro lugar o ensino do Direito não pode limitar-se a simples informações. Devemos proporcionar ao estudante uma adequada formação intelectual, jurídica, universitária ou humanista. A formação intelectual consiste na capacidade de compreender, analisar e sintetizar idéias e conceitos, na capacidade de julgar com critérios próprios e espírito crítico e, principalmente, na capacidade de argumentar e demonstrar o fundamento das próprias afirmações, mediante o emprego adequado da dedução, da indução ou da analogia. A essas exigências, deve ser acrescentada, ainda, a capacidade de comunicação oral e escrita, indispensável ao exercício da atividade jurídica, em qualquer uma de suas modalidades. Já a formação jurídica não se confunde com uma formação simplesmente legalista, como se alguém fosse um João das Regras. Ela consiste em compreender o Direito em todas as suas dimensões e não apenas como norma abstrata destinada a possíveis aplicações.
Consiste em apreender os valores de dignidade humana, liberdade, segurança, e, fundamentalmente, o de justiça, que dão o sentido e a significação de qualquer Direito ou norma. A formação humanista é aquela formação aberta aos valores da cultura e aos problemas fundamentais da sociedade em que vive. Por fim, formar juristas não significa simplesmente formar advogados, mas se estende à preparação adequada de juristas, para todas as especializações indicadas”.